(Último capítulo)
“… não está bem. Eii! ‘Tá-me a ouvir amigo?!”, por breves
segundos pensei que me estivesse a acontecer tudo de novo, então dei um salto
para trás em pânico.
“Oh diabo… tenha lá calma jovem. Estava só aqui a passar e vi-o em frente ao
contentor meio inconsciente, fiquei preocupado. Você está bem?”, era um senhor,
de barba branca por fazer, olhava-me intrigado.
“Ha… si… sim sim, acho que sim.”, disse ainda a tentar enquadrar-me nesta
realidade.
“Pronto veja lá. Tenha um bom dia.” Desejou o senhor.
“Esta juventude de hoje em dia perde-se nas drogas, é uma tristeza.” , ouvi ainda
o senhor a desabafar para si mesmo.
De facto estava encostado aos contentores onde normalmente ponho o lixo, um
pouco abaixo da rua de minha casa. Porque é que não me lembro do que aconteceu
para ter ido ali parar?
Sentia a cabeça a mil, e apesar de já não haver bosque, seres esquisitos e luz
incandescente, aquelas imagens não me saíam da cabeça. Todo o ar que me
circundava continha valor para mim. Tinha visto o abismo, sido parte dele, e
tudo o que fosse ter os pés na superfície enchia-me de alívio.
Com o dia a nascer, o sol espreitava já a minha rua, quando
avisto do outro lado da estrada a certeza em forma de quatro patas, de que tudo
aquilo não fora aleatório. Havia uma razão para ser julgado, ser confrontado, e
bater fundo no poço do desespero.
Há tempos atrás, foi-me dado um cão, já adulto, que uma amiga minha tinha
recebido de outra pessoa que não podia tratar mais dele. Achei que o orgulho
deveria prevalecer e então, passado um tempo achei que não seria capaz de o ter
no mesmo tecto, não querendo avisar a minha amiga. Coisas, simples e vulgares
coisas materiais foram estragadas, algumas “asneiras” foram feitas, e
considerei por bem pôr fim a isso… e fi-lo da pior das maneiras possíveis. Decidi
abandoná-lo. Nem me recordo bem onde exactamente, acho que quis despachar tudo
para que rapidamente deixasse de me sentir culpado. Que prepotente. É preciso
ser-se reles para quebrar a confiança e jogar com a vida de uma das mais fortes
representações de pureza que ainda existe no planeta. Pureza que nunca terei
por mais que me confesse, que nunca conheci em nenhum humano, e muito
provavelmente nunca irei ver essa característica reflectida em ninguém até ao
fim dos meus dias. Por vezes é mais difícil perdoarmo-nos do que quem magoámos
nos perdoar. E foi neste momento que eu fiquei sem razões para o fazer, não
merecia. Quando o vi, ele aproximou-se de mansinho, de cabeça baixa, e levantou
só o olhar de encontro ao meu.
Sentia embaraço, vergonha absoluta e quem devia estar de cabeça apontada aos
pés era eu. Toquei-lhe carinhosamente no focinho, acariciei-lhe as orelhas, e
abracei-o.
“Desculpa. Quem sou eu? Que raio de coisa é que eu sou para te ter feito passar
por tudo o que passaste?! Perdoa-me…
quero ser melhor pessoa.”
Enquanto uma lágrima percorria o seu
percurso pela minha cara, ele nem se mexeu. Aceitou o meu abraço e fomos juntos
para casa.
Um ano depois, a fazer uma caminhada com o meu companheiro Rocky,
o verdadeiro lutador, cruzei-me com um antigo colega de faculdade, o João.
Para pôr a conversa em dia fomos beber uma cerveja numa esplanada, estava o
calor típico de verão.
João tinha também um cão que trazia com ele, um pequeno rafeiro cor de
chocolate.
Podia jurar que me tinha piscado o olho… E jurei, para mim mesmo, que nunca mais daria nada nem ninguém por garantido. O que entendemos por certo nas nossas vidas, muitas vezes tem muito mais para nos dar se estivermos atentos. Como o sorriso do Rocky.
FIM
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