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"Matei-o" - Teatro

O resultado da junção de 9 monólogos da obra "crimes exemplares" de Max Aub foi este, com confissões peculiares de personagens que no fundo... só queriam sossego, coitadas... https://www.facebook.com/antonysousa10/videos/vb.100000047167396/1201844059827155/?type=2&theater

O despertar do fiel lutador

(Último capítulo)

“… não está bem. Eii! ‘Tá-me a ouvir amigo?!”, por breves segundos pensei que me estivesse a acontecer tudo de novo, então dei um salto para trás em pânico.
“Oh diabo… tenha lá calma jovem. Estava só aqui a passar e vi-o em frente ao contentor meio inconsciente, fiquei preocupado. Você está bem?”, era um senhor, de barba branca por fazer, olhava-me intrigado.
“Ha… si… sim sim, acho que sim.”, disse ainda a tentar enquadrar-me nesta realidade.
“Pronto veja lá. Tenha um bom dia.” Desejou o senhor.
“Esta juventude de hoje em dia perde-se nas drogas, é uma tristeza.” , ouvi ainda o senhor a desabafar para si mesmo.
De facto estava encostado aos contentores onde normalmente ponho o lixo, um pouco abaixo da rua de minha casa. Porque é que não me lembro do que aconteceu para ter ido ali parar?
Sentia a cabeça a mil, e apesar de já não haver bosque, seres esquisitos e luz incandescente, aquelas imagens não me saíam da cabeça. Todo o ar que me circundava continha valor para mim. Tinha visto o abismo, sido parte dele, e tudo o que fosse ter os pés na superfície enchia-me de alívio.
Com o dia a nascer, o sol espreitava já a minha rua, quando avisto do outro lado da estrada a certeza em forma de quatro patas, de que tudo aquilo não fora aleatório. Havia uma razão para ser julgado, ser confrontado, e bater fundo no poço do desespero.
Há tempos atrás, foi-me dado um cão, já adulto, que uma amiga minha tinha recebido de outra pessoa que não podia tratar mais dele. Achei que o orgulho deveria prevalecer e então, passado um tempo achei que não seria capaz de o ter no mesmo tecto, não querendo avisar a minha amiga. Coisas, simples e vulgares coisas materiais foram estragadas, algumas “asneiras” foram feitas, e considerei por bem pôr fim a isso… e fi-lo da pior das maneiras possíveis. Decidi abandoná-lo. Nem me recordo bem onde exactamente, acho que quis despachar tudo para que rapidamente deixasse de me sentir culpado. Que prepotente. É preciso ser-se reles para quebrar a confiança e jogar com a vida de uma das mais fortes representações de pureza que ainda existe no planeta. Pureza que nunca terei por mais que me confesse, que nunca conheci em nenhum humano, e muito provavelmente nunca irei ver essa característica reflectida em ninguém até ao fim dos meus dias. Por vezes é mais difícil perdoarmo-nos do que quem magoámos nos perdoar. E foi neste momento que eu fiquei sem razões para o fazer, não merecia. Quando o vi, ele aproximou-se de mansinho, de cabeça baixa, e levantou só o olhar de encontro ao meu.
Sentia embaraço, vergonha absoluta e quem devia estar de cabeça apontada aos pés era eu. Toquei-lhe carinhosamente no focinho, acariciei-lhe as orelhas, e abracei-o.
“Desculpa. Quem sou eu? Que raio de coisa é que eu sou para te ter feito passar por tudo o que passaste?!  Perdoa-me… quero ser melhor pessoa.”
 Enquanto uma lágrima percorria o seu percurso pela minha cara, ele nem se mexeu. Aceitou o meu abraço e fomos juntos para casa.

Um ano depois, a fazer uma caminhada com o meu companheiro Rocky, o verdadeiro lutador, cruzei-me com um antigo colega de faculdade, o João.
Para pôr a conversa em dia fomos beber uma cerveja numa esplanada, estava o calor típico de verão.
João tinha também um cão que trazia com ele, um pequeno rafeiro cor de chocolate.
Podia jurar que me tinha piscado o olho… E jurei, para mim mesmo, que nunca mais daria nada nem ninguém por garantido. O que entendemos por certo nas nossas vidas, muitas vezes tem muito mais para nos dar se estivermos atentos. Como o sorriso do Rocky.

                                         FIM

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